quinta-feira, 7 de julho de 2016

Os pequenos peixes escondidos nas poças de maré

Por Marina Brenha-Nunes

Essa história começa na Baía do Araçá, que é uma planície de maré situada em São Sebastião, no litoral norte de São Paulo. Essa planície permanece quase inteiramente descoberta durante a maré baixa, mas na maré alta abriga um elevado número de peixes e raias, que adentram a planície para se alimentar e se reproduzir. Por estar ao lado do Porto de São Sebastião, que poderá ser expandido para a área da baía, ela tem sido estudada por pesquisadores de diversas áreas do conhecimento, a fim de servir de modelo para outros locais que necessitam desenvolver um plano de manejo e desenvolvimento local.

Quando se trabalha com peixes costeiros é muito comum que façamos a coleta deles durante a maré alta (maré cheia), principalmente por dois motivos: o primeiro é que na maré alta ocorre a maior quantidade de peixes próximos à costa; o segundo é que existem muitas técnicas de coleta para capturar o maior número possível de peixes em um determinado local, como por exemplo, a rede de arrasto, utilizando um barco a motor, e a rede picaré, que faz outro tipo de arrasto, manual, realizado na praia (veja mais sobre peixes e praias aqui).

Em uma tarde de trabalho intenso de coletas de peixes durante a maré alta na Baía do Araçá, a professora Dra. Carmen Rossi-Wongtschowski (minha orientadora), quem observava e supervisionava tudo, reparou que, quando a maré começava a baixar, alguns corpos d’água permaneciam isolados, desconectados do mar, na praia de fundo areno-lodoso. Ela observou também que havia muitos peixes vivendo ali nesses corpos, e que as amostragens realizadas na maré alta não estavam capturando aqueles animais, que também pertenciam ao Araçá, local de todo estudo que estávamos fazendo.

Conversa vai e conversa vem… decidimos que o meu projeto de mestrado seria estudar os peixes que habitavam esses corpos d’água na Baía do Araçá.

Na verdade, já existem estudos com peixes que habitam esses corpos d’água, que são chamados de poças de maré. Porém, percebemos que no Araçá existiam dois tipos de poças de maré, as arenosas e as rochosas. Observando essa diferença, começamos a suspeitar que esse fato poderia trazer variação nas espécies que viviam nos dois tipos de poça e na sua quantidade. E foi isso que fizemos… identificar quais e quantas espécies estavam presentes em cada tipo de poça.

Poça arenosa - Exemplo de uma poça arenosa utilizada na coleta de peixes na Baía do Araçá.


Poça rochosa -  Exemplo de uma poça rochosa utilizada na coleta de peixes na Baía do Araçá.

Pesquisando na literatura sobre os peixes que habitavam diferentes tipos de poças de maré, encontramos que havia basicamente estudos em poças rochosas, ou seja, não existiam trabalhos em poças arenosas. E isso foi outro fato que nos chamou atenção!...Como assim não estudam todos os tipos de poças que existem??

Pois bem, além de identificarmos dois tipos de poças em um mesmo local, não existia bibliografia que nos “iluminasse” quanto à coleta de peixes em poças arenosas. Assim, lá fomos nós! Desenvolvemos um protocolo/roteiro para a coleta dos peixes em poças arenosas que devesse atender a alguns requisitos básicos: (1) ser reproduzido para poças arenosas encontradas em qualquer lugar do planeta; (2) ser relativamente de baixo custo, principalmente para que pesquisadores de países em desenvolvimento (como o Brasil) conseguissem replicar o procedimento sem grandes problemas financeiros; (3) tinha que ser uma coleta rápida, pois a poça de maré deixa de ser uma poça a partir do momento que ela se conecta com o resto do oceano com a elevação do nível da maré, e isso leva em média de 3 a 4 horas. Dessa forma, com o intuito de contribuir para o projeto que estava sendo desenvolvido na Baía do Araçá, que era identificar o maior número de peixes de diversos tamanhos que viviam no Araçá, construímos uma rede com a tela de mosquiteiro (igual à de barrar mosquito), só que adaptada para pegar peixes!!!

Picaré com tela mosquiteiro - Utilização da picaré construída com tela de mosquiteiro em uma poça arenosa na Baía do Araçá.

Apesar das poças arenosas serem mais trabalhosas para coleta em campo em relação às rochosas, devido principalmente ao seu enorme tamanho e o curto tempo de trabalho disponível, conseguimos chegar a um nível de 89% de eficiência de captura com o procedimento desenvolvido! Ou seja, se em uma poça arenosa tivesse 100 peixes vivendo ali, conseguiríamos capturar 89 deles. E isso é ótimo, pois mostra que o nosso protocolo foi eficiente e pode ser replicado por outros pesquisadores, e até mesmo aprimorado!!

Em relação às espécies encontradas, identificamos algumas espécies diferentes entre os dois tipos de poça. Por exemplo, nas arenosas capturamos muitos indivíduos do peixe-rei (Atherinella brasiliensis), carapeba (espécies do gênero Eucinostomus sp.), o amboré claro (Ctenogobius boleosoma – que habita locais de fundo claro), o ubarana (Elops saurus). Já nas rochosas, capturamos basicamente espécies que possuem adaptações para tolerar as condições de uma poça de maré, como altas temperaturas e salinidade, diminuição no nível de água e oxigênio, foi o caso do amboré escuro (Bathygobius soporator – que habita locais de fundo mais escuro e se entoca em frestas das rochas) e um tipo de maria-da-toca (Scartella cristata, que também se entoca em frestas). Tão diferentes a ponto de nem serem consideradas pelos especialistas adaptadas à vida nas poças de maré!


Peixes coletados nas poças rochosas, amboré escuro (Bathygobius soporator) e a maria-da-toca (Scartella cristata).




Peixes coletados em poças arenosas, carapeba (espécies do gênero Eucinostomus sp.), ubarana (Elops saurus).








Vocês devem estar se perguntando: “Como assim? Mas então, como elas estavam lá?”




A grande diferença é que geralmente encontramos espécies de peixes típicas de poças de maré rochosas desde fases juvenis até a fase adulta, como foi o caso do amboré escuro e da maria-da-toca, mas nas poças arenosas encontramos muitas larvas (fase inicial do desenvolvimento dos peixes - saiba mais sobre larvas de peixes aqui) ou somente indivíduos juvenis de espécies que costumamos encontrar basicamente na maré alta, como é o caso do peixe-rei e da carapeba. Isso significa que se alguém considerava que, por ventura, esses dois tipos de poças poderiam abrigar as mesmas espécies de peixes, basicamente as que tinham sido descritas em poças rochosas, houve um grande engano. A diferença no número de espécies e na quantidade de peixes capturados entre elas é bem marcante e traz uma questão ecológica atrelada importantíssima para a conservação de ambientes costeiros, mostrando que precisamos conhecer todos eles antes de propor medidas únicas para todos os tipos de ambiente.

Poças de maré sempre foram habitats ecologicamente importantes para diversas espécies que participam e equilibram a cadeia alimentar costeira, além disso, podem interagir com espécies de peixes recifais e servir de isca para os pescadores. Colocando em pauta outros tipos de poças de maré, com algumas funções distintas daquelas já conhecidas, entendemos que as poças também podem vir a desempenhar um papel de abrigo para as larvas, fugindo de alguns predadores e aproveitando para se alimentar com maior “tranquilidade”. Muitas das larvas encontradas foram de espécies que são capturadas pelos pescadores na fase adulta durante a maré alta para o comércio ou seu consumo próprio. Mas, se degradarmos esses ambientes, onde essas larvas irão se abrigar?

Além de pensar no futuro dessas larvas, devemos pensar também que junto com uma construção portuária, vem atrelada uma questão de invasão de espécies que não são nativas da região. Também detectamos esse cenário no Araçá, uma vez que capturamos duas espécies exóticas (não nativas da região), o Omobranchus punctatus (muzzled blenny) e o Butis koilomatodon (mud sleeper) também conhecido como barrigudo ou dorminhoco, em poças arenosas e que são potenciais competidores das nossas espécies nativas. Além da degradação, o ambiente pode ser dominado por essas espécies, que desequilibram o ambiente e os ciclos de vidas das demais espécies.

Como ambientalista, é necessário conhecer, proteger e conservar áreas costeiras para que possamos ter um retorno produtivo para as nossas vidas e para nossas futuras gerações, pensando no equilíbrio ecológico natural do sistema, para continuarmos colhendo bons frutos da natureza.


Sobre Marina Brenha-Nunes
Bióloga, graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (São Paulo, SP). Desde a escola já queria seguir a vida de bióloga marinha, começando com uma vontade louca de participar do Instituto Baleia Jubarte, depois do TAMAR e fui trabalhar com peixes a partir de um estágio voluntário no Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP) em 2011. Trabalhei diretamente com morfologia de otólitos (ossos do ouvido interno dos peixes ósseos), passando por diversas consultorias ambientais e estudos de meio com escolas privadas. Depois disso, ingressei no mestrado do IO-USP e finalizei-o em maio de 2016 sobre os peixes em poças de maré e atualmente resolvi me dedicar à educação básica como professora de Ensino Médio na rede estadual.

Referências:
BRENHA-NUNES, M. R. (2016). Ictiofauna em poças de maré arenosas e rochosas e seus fatores estruturadores em uma planície de maré subtropical. Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 79.
BRENHA-NUNES, M. R.; CONTENTE, R. F.; ROSSI-WONGTSCHOWSKI, C. L. D. B. (2016). A protocol for measuring spatial variables in soft-sediment tide pools. Zoologia 33(2), 1-4. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-46702016000204000>
CONTENTE, R. F.; BRENHA-NUNES, M. R.; SILIPRANDI, C. C.; LAMAS, R. A.; CONVERSANI, V. R. M. (2015). Occurrence of the non-indigenous Omobranchus punctatus (Blenniidade) on the São Paulo coast, South-Eastern Brazil. Marine Biodiversity Records 8(e73), 1-4. Disponível em: <http://journals.cambridge.org/action/displayAbstract?fromPage=online&aid=9707340&fileId=S175526721500055X>

CONTENTE, R. F.; BRENHA-NUNES, M. R.; SILIPRANDI, C. C.; LAMAS, R. A.; CONVERSANI, V. R. M. (2016). A new record of the non-native fish species Butis koilomatodon (Bleeker 1849) for southeastern Brazil. Biotemas 29(2). Disponível em:<https://periodicos.ufsc.br/index.php/biotemas/article/view/2175-7925.2016v29n2p113/31676>

2 comentários:

  1. Parabéns pelo estudo Marina! No meu trabalho de mestrado coletei bastante Peixe-rei e larvas e Elos saurus em zona de surfe, utilizando o picaré! Não imagina que eles ficavam em poças também!

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  2. Muito legal como um trabalho completa o outro e assim vamos entendendo um pouco mais sobre cada espécie! Parabéns!

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