quinta-feira, 23 de junho de 2016

Atenção ao embarcar!

Por Catarina Marcolin

Olá a todos mais uma vez. Faz tempo que não escrevo neste blog, muito mais tempo que não embarco num navio, mas com a passagem do dia mundial dos oceanos, muitas lembranças afloraram. A maioria eram lembranças boas, outras nem tanto. Especialmente de histórias que ouvi.

Em alguns outros posts publicados aqui no blog, você pode ter lido sobre as aventuras de trabalhar no mar, de mergulhar até o fundo dos oceanos, ou de viajar pelo mundo em navios estrangeiros. Mas trabalhar embarcado em um navio oceanográfico nem sempre é uma experiência fantástica, especialmente se você é uma mulher. 

É importante nos lembrarmos de que, quando estamos num navio, estamos também confinados, cercados pelo oceano, sem possibilidade de fazer uma ligação, sem acessar internet, sem ter a possibilidade de visitar um amigo ou familiar, não se pode voltar para casa quando bem entendermos. Um navio também é um ambiente extremamente masculino. A maioria dos tripulantes é composta por homens. Nos pelo menos cinco embarques dos quais participei, conheci uma única mulher tripulante fixa de um navio, ela era a enfermeira de um navio supply, aqueles que dão suporte à plataformas de petróleo. Em navios oceanográficos, não espere encontrar uma mulher tripulante. 

Quando à tripulação científica, daí sim, é mais fácil encontrar mulheres, apesar de haver uma preferência nítida a homens, pois muitos dos trabalhos envolvem força física. Precisamos carregar caixas, redes, frascos, equipamentos pesados. Mas não é somente isso! São muitas as atividades que, para serem desenvolvidas, necessitam de habilidades como liderança, iniciativa, comunicação, gerenciamento, manuseio de equipamentos, habilidades sociais e intelectuais. O trabalho é realmente duro, mas contrariando o senso comum, conheci mulheres que dão um baile em muitos homens, quando se trata de trabalho embarcado. Inclusive, eu mesma já fui impedida de embarcar num navio, o qual estava programado para realizar tarefas de um projeto do meu doutorado, sob o "argumento" de que não havia instalações adequadas para receber uma mulher. 

Se você acha que não é um grande problema este desequilíbrio usual na proporção entre homens e mulheres embarcados, talvez você possa perceber uma certa vulnerabilidade que nós mulheres podemos estar sujeitas em um ambiente como esse. Eu sempre embarquei em grupos grandes de pesquisadores e trabalhei com tripulações maravilhosas. Sempre fui tratada com enorme respeito. Infelizmente, nem sempre encontraremos este ambiente respeitoso no dia a dia de um embarque.

Para ilustrar essa vulnerabilidade que venho tentando destacar, entrevistei duas biólogas que me relataram situações extremamente inadequadas que viveram num embarque num navio em nossa costa brasileira. No post de hoje contarei a história de apenas uma delas. Ambas preferiram se resguardar pelo anonimato, então a chamarei de M a seguir.

BPCN: Alguma vez vocês já se foram excluída de um embarque para "dar espaço" a um homem?

M: Não, isso nunca aconteceu comigo, embora em nosso laboratório se dá mais preferência aos homens, pelo argumento de que à bordo há a necessidade eventual de se carregar peso.

BPCN: Quantas vezes vocês já trabalharam embarcadas e em quantas dessas vezes vocês passaram por situações desconfortáveis ou inconvenientes, que lhe causasse insegurança?

M: Participei de quatro embarques, aconteceram situações chatas em dois deles, mas em apenas um deles me senti insegura.

BPCN: Você poderia relatar alguma situação inconveniente que aconteceu com você? 

M: Eu embarquei duas vezes numa consultoria que contratou um navio para fazer um estudo de monitoramento ambiental. Um funcionário que trabalhava no convés fazia constantes brincadeiras de mau gosto com meu sotaque. Mas ele tinha problemas com outros funcionários também. 

A segunda situação, a que me deixou insegura, aconteceu num navio, que prefiro não revelar seu nome nem instituição de origem. Eu não  imaginava que fosse passar por algo semelhante num navio que pertence a uma instituição de muita credibilidade. Entretanto, já tinha ouvido alguns relatos de expedições anteriores e confesso que já tinha um certo receio de ir nesta expedição, mas não imaginei que aconteceria o que aconteceu.

Alguns membros da tripulação tinham um comportamento muito inapropriado. Todos os dias nós dividíamos a sala de refeições com alguns tripulantes. Antes mesmo de acabarmos nossas refeições, alguns tripulantes (de uma importante posição hierárquica dentro do navio) colocavam vídeos musicais de mulheres semi-nuas (funk, axé, pagode), sempre com imagens de homens e mulheres em coreografias insinuantes, fazendo alusão ao ato sexual, com som muito alto. Além disso, todos os dias havia consumo de álcool e os tripulantes nos ofereciam bebidas alcoólicas exaustivamente, especialmente para as mulheres, com intenção clara de nos embebedar. Eles tentavam exaltar seus méritos a todo momento, numa tentativa clara de conquista. Eu sempre me retirava da sala quando começavam com os vídeos e a bebedeira, e aconteceu de alguns deles virem atrás de mim, perguntando porque eu não queria beber, insistindo muito, me assediando. 

Isso não incomodava somente as mulheres, vários dos nossos colegas homens também se chateavam com a situação, mas em nenhum momento eles se manifestaram. Esta situação foi crescendo, culminando com o próximo caso a ser relatado. É importante destacar que este não era um comportamento de todos tripulantes. Ao mesmo tempo em que fomos assediadas por alguns, outros nos tratavam de forma muito respeitosa. 

Em um determinado dia houve uma confraternização com churrasco e as bebidas começaram desde cedo, pela manhã ainda. Um dos tripulantes bebeu tanto, que ameaçou se jogar do convés, o que causou enorme confusão. Durante o jantar, um dos nossos colegas (homem) estava jantando enquanto um dos tripulantes, que estava caindo o tempo inteiro de bêbado, derrubou cerveja na mesa, e após sua inútil tentativa de limpeza acabou atingindo com um guardanapo sujo o prato de nosso colega pesquisador, que ficou muito nervoso, pois entendeu que se tratava de um evento de racismo. 

Diante de tanta confusão nem consegui jantar neste dia por conta de tantos constrangimentos. Me dirigi para a copa para buscar uma fruta e lá parei alguns minutos para conversar com um tripulante sobre a situação. Neste momento entrou um outro tripulante que estava muito bêbado e ficou fazendo perguntas sobre minha amiga (pesquisadora). Eu tentei sair da copa, mas fui impedida pelo tripulante alcoolizado que insistia que eu fosse buscar minha amiga. Fui defendida pelo tripulante com o qual estava conversando e assim consegui sair da copa. Percebi que havia uma sensação de indignação por parte de vários tripulantes, pois este tipo de situação não poderia ser tolerado pela sua classe profissional. O que mais me deixou insegura é que em nenhum momento tivemos acesso ao comandante, nunca podíamos vê-lo e ele nunca respondeu aos nossos chamados e tentativas de contato. 


Ilustração: Caia Colla.

Para nossa sorte, um dos tripulantes levou o nosso caso ao comandante, que acabou por tomar uma providência, não sabemos exatamente qual foi, mas não vimos mais o tripulante que nos causava os maiores problemas. Fomos chamados para uma reunião com o imediato que ouviu, enfim, nossos relatos e convocou uma reunião com os causadores de problemas, proibindo o consumo de bebida alcoólica, os vídeos insultantes e os comportamentos que nos causavam desconforto. O comandante solicitou que o assediador se desculpasse publicamente comigo e com o meu colega pesquisador (sobre o evento do jantar), mas nada aconteceu com os outros assediadores.

Durante esta expedição, não foi possível realizar os trabalhos de coleta porque houve alguma avaria no navio logo. O navio perdeu sua velocidade e não conseguia mais navegar apropriadamente. O navio não nos desembarcou onde deveria, nos levando direto ao ponto final, e não nos foi comunicado o motivo, bem como não houve alguma explicação sobre o problema. Ficamos sete dias até chegar no nosso destino final, completamente ociosos sem informação do que estava acontecendo. 

Este mesmo navio e sua tripulação foi novamente disponibilizado para finalizarmos os trabalhos não concluídos nesta segunda expedição. Eu tive ainda que participar desta segunda expedição, mas felizmente não passamos por nenhuma outra situação de insegurança. 

Entretanto, nos deparamos com uma outra situação muito estressante e preocupante. Estávamos arrastando uma rede bongô, que deveria descer a 200 m de profundidade. Notamos que o arrasto estava durando muito pouco tempo. Descobrimos que o responsável do guincho recebeu ordens de um tripulante (superior ao operador do guincho e responsável pelas operações de convés no meu turno de trabalho) para descer menos corda do que precisávamos para que finalizássemos mais rápido o nosso serviço, comprometendo nossa amostragem e a qualidade dos nossos dados. 

BPCN: Porque você acha que o responsável pelas operações de convés tentou sabotar/boicotar o trabalho de vocês? Você acha que foi por ignorância ou foi uma tentativa deliberada de "se vingar"? 

M: Não faço a menor ideia. Não obtivemos nenhuma explicação. Não sabemos se foi vingança, desrespeito por sermos mulheres (uma mulher era a chefe da expedição), preguiça de trabalhar, pressa de voltar para casa, desrespeito pelo seu ambiente de trabalho… Enfim, qualquer que tenha sido o motivo, é muito lamentável por tudo que isso representa, é um gasto indevido de dinheiro público!

Também é super importante considerar a perda de uma valiosa informação científica, causada por um trabalho duvidoso/irresponsável por parte da tripulação. Especialmente nesta conjuntura em que nosso país se encontra no momento, obter recursos para a realização de coletas de campo, principalmente em regiões oceânicas, tem se tornado cada vez muito difícil. 


No fim das contas, os relatos que ouço e repasso demonstram claramente que nos embarques, seja com finalidade de pesquisa científica ou consultoria paralela, ainda existe preconceito sim por parte das tripulações masculinas, que tem a visão da mulher como sexo frágil, o que a torna inapropriada à vida a bordo, onde o dia a dia exige força e adaptações físicas para o trabalho realizado em um ambiente regido pelos movimentos das correntes marinhas.

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